quinta-feira, 19 de abril de 2018

O coração é mudo perto da sirene de uma ambulância

  Anda por um mesmo solo, mas as sementes que leva no bolso já não germinam mais. Abre as frestas
na terra marrom coloca-as na mesma posição de sempre, amacia os grãos de terra muito compactos,
afofando as laterais, cobre-as, cerca-as dos cuidados de um agricultor experiente, acostumado ao plantio de uma esperança e a chuva não chega. A água dos regadores não é o suficiente, as mãos de ternura, o solo aerado, o clima certo da estação conhecida também não são; nada brota.
  Passeia por entre os campos, buscando erva daninha, pragas que não existem, rumina a frustração de só ter nas mãos a promessa e não mais as certezas, enquanto o gado ainda pasta.
  E se desviasse o curso dos rios vizinhos para a sua propriedade? E se mais mãos estivessem dispostas a ajudá-lo? E se alterasse os ritmos climáticos que não trazem as chuvas até as suas sementes? Por que é tão homem e a natureza tão indomável?
  Anda por um solo desconhecido e deserto, as sementes morrem nelas mesmas; não podem mais ser outra coisa. O homem olha para o céu, enquanto o gado é tranquilo e pasta.

  Os primeiros metros serão os mais difíceis, depois acostuma-se com o silêncio ou com os sons que aparecerão no caminho. Incontroláveis, incertos, possíveis. Os passos dos outros, os próprios, um cão que latirá ou mais cães ou nenhum, um carro passando sobre a poça de água, brecando antes da praça, escorregando no óleo da avenida, um grito, um sussurro, a risada de alguém, as batidas do próprio coração. Alguns metros mais e não acostuma-se; o dissonante, o trepidante, o indiscriminável: que som é esse?
  Queria música. Queria a precisão das cenas de um musical: música melancólica e lágrima, batidas mais rápidas e superação, o dedilhar no piano e encontro. Mas a música não toca enquanto atravessa a rua; não tocou antes, não tocará depois. As buzinas afastam, o coração não é mais alto que o som da cidade; o coração é mudo perto da sirene de uma ambulância.

  Não compra mais jornais, não os lê começando pelas seções de preferência: cidade, esportes,  política, economia, pula os classificados, cultura, entretenimento só até a metade. Não se informa mais a partir da sequência aprendida: título, lead, autor, ilustrações, legendas e matéria. Não pensa nas fontes que o jornalista ocultou e nas que ele apresentou prontamente, não reflete sobre a empresa que publica o jornal, na que o mantém e naquelas que patrocina cada parágrafo lido. Não desconfia, não retira os olhos da página por alguns segundos e nem perde o olhar depois de uma pergunta brotar entre as notas; não demora os minutos que cada notícia demanda. Depois da imagem de uma criança na guerra não poderia passar a página e já começar noutra experiência - não é mais a pessoa deste tempo.
  Consome notícias, cada vez em maior número e gravidade, mas os olhos seguem sem serem interrompidos por pergunta nenhuma. Perguntas não existem para as pessoas deste tempo.

  As vozes antigas não frequentam mais os sonhos, não saem mais das bocas das personagens dos filmes, não aparecem nos meses de estiagem e noites de domingo, enquanto lava um prato e desliga a TV.
  A cabeça é a mesma com a cicatriz perto da orelha, os cabelos os mesmos com uma tonalidade nova de tinta a cada semestre, o ouvido não perdeu a acuidade elogiada, mas as vozes têm se distanciado, têm se tornado silêncios não sentidos. Se desaparecerem, ninguém saberá; quando não forem mais possíveis, a falta será a estranha sensação de ter esquecido algo, mas nunca se descobre o quê.
  As vozes que foram embora e se repetiam há anos, como as músicas no shuffle, saem da playlist e dão espaço para álbuns novos, que não cantam a língua antiga.

  O olhar do cão doente no bagageiro do carro, que entrou pelo meu dia e me fez mais bicho, mais irmã do animal e menos gente com inteligências diversas, bípede, com coordenação motora fina e movimento de pinça. O último olhar do cão que me fez querer compartilhar da sua comida, corrida e uivos noite a dentro.
  O espelho do banheiro não está menos brilhante, não oculta imagens atrás do vapor, mas os olhos humanos refletidos, agora, são tão amorosos quanto do cão partindo. Cão corpulento, mandíbula forte, cão com as quatro patas robustas imóveis; toda a vida do cão nos seus olhos fadigados de dor e marejados de despedida lenta e grata. Por que os cães são tão gratos, quando, quase sempre, merecem mais do que recebem?
   O cão que não é meu, mas o seu olhar, desde a manhã, é.

  As chuvas que andam por outros caminhos e negam a vida que as mãos insignificantes não podem gerar sozinhas; os sons ordinários das ruas que calam as batidas poderosas de um coração que não é nada nas cidades. As notícias, cuja veracidade ou agudez não fazem diferença; as vozes silenciadas, as memórias afogadas e  as músicas da tribo que ninguém mais canta.
  O olhar do cão, chamando alguém para a vida e para o amor que não desiste na perda; só se despede e fecha o bagageiro com saudade. As mudanças mais contundentes não são explicáveis ou visíveis, só são. Só acontecem. A sirene de uma ambulância, às vezes, carrega mais vida do que um coração que só se prepara para atravessar uma rua.




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