sábado, 7 de abril de 2018

A vida é tão líquida quanto uma pedrada que não chega

  Era para ter sido janeiro, dia primeiro, talvez dia dois ou três, compreendendo os recessos da virada do ano, os atrasos pós-festas de réveillon. Entendendo que as chuvas de verão poderiam acidentar o trajeto e que as ressacas ainda precisavam ser curadas, poderia demorar um pouco mais. No calendário aparecia o número dez e, ainda, nada.
  De repente, é abril e não veio, há dias de esquecimento dessa não chegada, em algum momento ela se acomodará na fila das esperanças que ficaram no varal depois da mudança. O caminhão cheio, o trânsito começando a ficar intenso, a criança logo terá fome e o cão já está inquieto no carro. Duas camisetas ficarão para trás e na desordem da nova casa, ninguém se lembrará delas. Era um sonho de presença que sacudirá com o vento, queimará sob o sol e se encharcará debaixo das correntes de névoa espessa pela manhã e chuva no final da tarde, até desbotarem, se desfazerem e serem encontradas em farrapos no chão do quintal pelos novos moradores. Quase tudo pode ser esquecido. Quase tudo poderá se desmanchar no varal, se o tempo não for de lembranças.
Foi com a inabilidade  de um dia de mudança que o esperado não aconteceu e ficou para trás, completamente desassistido.

  Era para ter amanhecido com um novo tom no quarto, as cortinas não mudariam, a cor da parede ia ser a mesma da noite anterior, a estampa do lençol não surpreenderia, a densidade do travesseiro não ia ser mais nem menos, mas ao abrir lentamente as pálpebras, os olhos reconheceriam um outro reflexo no espelho aos pés da cama, o que traria um espectro de luz amarela-alaranjada que anunciaria o frescor da primavera de um final de semana no apartamento de fundos.
   Diferente do verão, quando os sonhos chegam suados ou desmarcam porque o sol está demasiado quente ou vão ao centro para comprar um ventilador e se atrasam, o reflexo não veio quando era outono e nem uma mensagem com um pedido de desculpas chegou pela manhã.
Foi com a imprevisibilidade de uma tarde muito quente que a desistência abriu as cortinas e dobrou  o lençol. Às vezes acontece de num encontro faltar uma das partes, porque é tarde, é sexta, é um caminho longo até o outro estado ou porque não suporta carregar uma estação inteira no porta-malas.

   Já era silêncio passivo e olheiras no espelho do elevador até o décimo segundo andar, mas numa parada no terceiro, ela entrou e despejou seus sorrisos e olhos brilhantes e molhados nos meus braços até contaminar, sem remédios, vinte horas de um dia que estava decido a ser triste. Se não nos conhecemos antes foi por culpa dos elevadores ou da sua recente chegada à vida. Nossas descoincidentes subidas terminaram com as suas mãos hábeis puxando a minha camiseta, pedindo para eu ficar ou ela ir comigo; a surpresa da sua presença humilhou o silêncio e afastou as olheiras do espelho.
  Foi com a precocidade de uma simpatia às oito da manhã e a chegada não esperada que o dia nasceu outro, mesmo depois de já nascido; duas manhãs que se encontraram na porta do elevador do prédio azul e se tornaram uma, menos cinzenta muito mais jovem.

  Era para ser despedida, sem dramas, sem discursos, sem testemunhas da partida, era só ir lá e mergulhar profundo, aproveitar um pouco, se conseguisse, e encontrar o caminho menos instável, depois das águas.
  Já se preparava para descer  do único topo que aprendeu a pretender, aspirava ar salgado e abandonava-o num suspiro com braços relaxados, porque era esperado, depois do quebra-amar, debaixo de um guarda-sol.
  Foi com a imprecisão da natureza que a onda veio robusta, generosa e urgente, quando o surfista desistia do mar, ela sacudiu a sua prancha e o ergueu até a sua crista, lugar mais alto das suas buscas; nunca foi ao encontro da estabilidade na areia. Pertencia à vida líquida, aceitava a sua identidade.

  Era para ser perecível, duas ou três semanas, no máximo um semestre, mas o terreno foi bem menos hostil do que parecia, ao longe,  e as mãos mais grossas do que se esperava ter. Foram centenas de sementes jogadas em  desordem que as temperaturas, as águas e os insetos forçaram à vida plena, abundante e ilimitada.
  Foi com incerteza entre o solo e a semente, com as improváveis chuvas no inverno, a ausência inesperada de pestes e pragas que as raízes brotaram, fixaram e se alastraram pelas encostas desertas de longevidade; e a vegetação nunca mais foi vazia. 

  Foi com a imprecisão das ausências que esquecemos de anotar na agenda, que uma coisa nunca apontou na esquina e outra se colocou na nossa porta na manhã de um dia cinzento, iluminando rosto, sorriso, da sala de estar até área de serviço do outro lado da casa.
 Com a imprecisão das ausências esquecidas, com a sutil semeadura das dúvidas que crescem e são colhidas com valentia, com a impontualidade dos encontros que nunca mais nos abandonam, o calendário é menos nosso e muito mais do mistério. Era para ter sido ontem, ainda não foi. Era para ser hoje, quem sabe se será? A vida é líquida e tão surpreendente quanto uma pedra jogada e uma cabeça subitamente desviada; sem avisos compreensíveis.



4 comentários:

Kellen disse...

❤️

Amanda Machado disse...

Casa aberta... vinte e quatro horas; nunca fecha.

Bel disse...

Tbm tô aqui! Gostei da música! vc acha cada coisa...(boa)

Amanda Machado disse...

Opa...chega aí. Coisas boas é que me acham, Clemê.