quinta-feira, 5 de abril de 2018

A corrida não acaba num par de tênis

  Quando os solados começam a ficar desgastados e tortos,  dependendo do tipo de pisada inclinam-se
para dentro ou para fora, se as laterais tornam-se mais frouxas e instáveis, a palmilha sai do lugar com frequência e, por isso, as solas dos pés já não ficam mais acomodadas em  uma superfície plana e regular, significa que o tempo de uso do par de tênis celebra o seu final. Os sinais de término começam sutis, por uma pequena linha solta, o tecido que afina-se, os cadarços que precisam ser mais apertados e a cada semana tornam-se mais evidentes, às vezes acontece um rasgo, uma fenda e depois de estarem claras as indicações não temos muito tempo, num dia estão nos pés e na mesma manhã precisam ir para o lixo.

  Quando chega o fim de um tênis de corrida, de uma corredora amadora, é uma sensação estranha de melancolia pelas distâncias superadas materializadas num descarte, como se o par esgarçado estivesse impregnado de todo o esforço e nenhuma medalha para colocar no peito. Não há pódio, flores, aplausos, faixas a serem atravessadas, não há sequer um cronômetro a ser superado. A entrega mais completa e determinada é, toda ela, enrolada languidamente em um saco plástico preto, que é levado para o container do condomínio, onde abrigam-se outras mortes não anunciadas.

   Correr é repleto de individualidade, não convida ao diálogo nem partilha e, num mesmo tempo, é tumultuado de vozes e generosidade, os joelhos, pés, dedos, músculos da virilha todos se tornam entidades a serem profundamente compreendidas, precisam ter seus limites respeitados. O par de tênis sustenta a tripulação de operários organizados.
  Quando um par de tênis precisa ir ao lixo, uma história com suas geografias, filosofias e biologias é fatalmente terminada, mesmo que se quisesse atravessar outras distâncias com os mesmos solados amarelos; mesmo se ainda estamos no meio da semana e o outro par ainda não chegou pelo correio, mesmo que ele pareça carregar toda a cidade.

  As derradeiras corridas com o par dos últimos tempos são recortes de cenas delicadas de adeus e gratidão; os tênis são os leais companheiros dos dias de chuva imprevista, de sol incendiário ou das tardes mornas com cheiro de álcool dos bares da avenida nos sábados. Os tênis, só eles sabem o quanto de espaço, esforço e afeto precisaram ser percorridos até chegarmos ao luto do saco plástico na lixeira.
  O correr é um exercício para o nada, o começo e o seu final coincidem num ponto espacial, mas são opostos simbólicos; a corredora que sai, invariavelmente, se perde no caminho e a que retorna não reconhece o que deixou; o correr é um mistério que não aponta resposta. É  abandono e retorno sucessivos sem lágrimas, sem dramas, sem perdões; correr é suor e simplicidade.

  Quando um par de tênis de corrida acaba, leva com ele todas as possibilidades de novos dias, novos pisos, novas paisagens compartilhadas; enterra o nosso porvir juntos e, afastado dos pés, é somente uma coisa oca, velha e sem lembranças. Mas quando um par de tênis, ainda se despede, todo ele é uma narrativa de disciplina e coragem que parece me chamar a tambémcontinuar. Ele é o fim da corrida, o par de tênis de solado amarelo que não brilhará mais todas as manhãs; é doloroso o rompimento, mas é necessário que acabe algum dia.
  A corrida amadora é uma loucura disciplinada, uma inquietação que deseja horizontes e amplidão, que não tem medo do escuro, do frio, da chuva, que só precisa ir, apesar de tudo.

  Se um par de tênis precisa ir ao lixo, leva com ele os quilômetros que superamos, as bolhas que as suas costuras nos primeiros dias me provocaram, as pequenas pedrinhas incrustadas nas suas linhas do solado, os longos suspiros que eu só experimentei porque ele me levou a algum lugar, as angústias ultrapassadas, as alegrias que não puderam ser partilhadas. Só os tênis de corrida sabem o que é passo de fuga ou de encontro; os corredores nem sempre.
  Quando um tênis de corrida acaba, ele anuncia a transitoriedade da própria passagem; nenhum encontro permanece o tempo que gostaríamos de estar nele, só dura o tempo mesmo da corrida, é limitado e abundante.

  Quando um par de tênis não pode mais acompanhar a caravana, outro chegará pelo correio, os pés estranharão e ele aos pés, ganharão caminhos e serão um do outro até a última corrida juntos.
Um par de tênis novos, recém-chegados, são uma esperança recomeçada. São os países que ainda não fomos, as lamas que ainda não mergulhamos, os automóveis que irão se escandalizar com a  nossa velocidade tão desamparada de máquinas.
  Se um par de tênis acaba sem nunca ter oferecido medalhas, significa que as vitórias nunca irão ao lixo com ele nem as derrotas, elas permanecem nos pés. A corrida não acaba num par de tênis nem no pódio ou na chegada. O correr é uma loucura permanente que troca de tênis, mas não desiste de ir em busca do nada.



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