sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Por onde passa o teu coração que já não faz mais barulho perto da minha porta

   Por onde passa a água daquele rio, que lavava as roupas que você nunca mais usou, que só em fotos antigas sobreviveram limpas? Passa por onde o caudaloso rio que molhava os pés das crianças, teus irmãos, em cima dos cavalos, corrente de água que puxava-os com toda força e eles resistiam? Por onde passa a sinuosa e barrenta curva, cujas margens tomadas pelas raízes seguras deram a vida de volta ao teu pai afogado?
  Por onde passa o silêncio longo do deserto no inverno, que nem a chuva alcançava? 
  Por onde passa o começo das noites de escuro amarelo da lâmpada fraca que atraía os insetos e quase nada iluminava?
  Por onde anda a tua saudade que não se comunica mais com a minha que, independente, vive de outras imagens que talvez não se pareçam com as quais eu me impregnei para você se lembrar quando quisesse? Me cobri da vida que era tua, para que você nunca a perdesse. Mas, e agora, por onde passa a tua memória, já que não por mim?

   Por onde passa a avenida que tua vida construiu longe da minha casa? Tem os mesmos postes de luz dos teus sonhos que eu conheci ou sonhou com outros, inimagináveis em mim?
   Por onde passa o prédio alto em que você decorou um apartamento todo cinza, com vidros transparentes e tapete de trama industrial que nenhuma mão tocou?
  Por onde passam as pessoas da casa antiga, que não estendem mais as roupas num varal comprido, não molham as plantas, não aparam a grama ou chegam com os seus rostos miúdos por entre as grades da janela, quando batem palmas? Por onde passa o teu medo de não as ver mais? Ainda o tem ou a coragem o libertou das familiares faces?
  Por onde passa a tua covardia, agora que não a revela mais para mim? A quem diz, quando está vazio? Há um alguém para isso?

  Por onde passam as deidades dos domingos que nos amedrontavam e nos acolhiam, num mesmo banco, lado a lado? Por onde passa a nossa fé, agora que nenhum de nós canta mais o hino na língua que nos ensinaram? Por onde jorram as águas dos batismos, os incensos dos dias de meditação e penitência, as pétalas macias das coroações as quais não assistimos mais? Por onde anda a tua alma que não compartilha mais os ritos, não se comove com os textos, não se abre para o não-visível? Quando tem uma dor sem remédio, você ainda chama alguém, olhando para o céu? Ou saca uma receita da sua gaveta e, anestesiado, dorme para não chorar? O mistério ainda o estimula ou só angustia? 

  Por onde passam as mulheres que trabalhavam na fábrica de malhas que fechou? Que postos ocupam agora, ainda serão passadeiras, arrematadeiras, debrunhadeiras?  E a mulher que não sabia fazer outra coisa que camisetas, tem notícias dela? Por onde passam as pessoas que passavam por nós e não passam mais? Ou nós é que deixamos de passar por elas?
  Por onde passa a tua memória olfativa, que cheiro tinha a casa que você morava, a tua mãe, a tua avó, que cheiro tinha o teu quarto, quando apagavam as luzes amarelas? O cheiro tinha mais força, quando as imagens eram silenciadas? Que cheiro tinha a alegria? Tinha um cheiro, não tinha? Se lembra ainda? Para você também ou é só para mim que o mundo é um mercado popular tomado por aromas?

  Por onde passa a paixão arrebatadora, dolorida e, também, redentora que não bate mais por quem achávamos que nunca cessaria? Por quem bate, agora, então? Pelo homem meio estrábico do escritório ao lado, pelo vizinho castanho ou pelo gentil par de dança que chegou no mês passado e nunca pisou no teu pé?  Por todos ou nenhum? Como ter a certeza de que ainda baterá por alguém? Do mesmo jeito ou de um outro modo? Se menos intenso e caloroso, ainda valerá a pena? Como saber se não é uma invenção para distrair-nos da verdade? Não é tarde para arriscarmos? Ainda podemos ir, nos entregarmos e cairmos, se for o caso, e voltarmos saudáveis, de novo, sem grandes sequelas? Você aprendeu a resposta?

  Por onde passa a tua mão, agora? Que cinturas, silhuetas e curvas, elas descobrem? Que cabelos afagam, que outras mãos apoiam?
  Por onde passam os fios grossos dos teus cabelos, que fronhas eles invadem, que ralos entopem, em que pentes e pias eles se perdem?
  Por onde a tua ilusão passa, agora que você é quem gostaria de ser? Por onde os teus novos sonhos viajam, se o rio não tem mais a água que afogava e salvava teu pai, molhava os pés dos teus irmãos, lavava tua roupa com a espuma das mãos da tua mãe e regava tua esperança de voo?
 Por onde passa os incêndios dos teus amores, as dúvidas da tua fé, o silêncio das tuas noites e os cheiros da tua memória, se você não se lembra de quem as guardou para você?

  Por onde passa o que eu sou, quem eu quero ser, se eu sempre me ocupei de lembranças, histórias, dores e confissões que não eram minhas, para devolvê-las, quando precisassem? O que eu faço com aquilo que eu deixo vazio para caber tudo do outro, depois que preenchem, buscam quando podem?   Por onde passa a minha abandonada saudade, que quase não se encontra mais com a sua, e que precisa ser inteira, devolvida para si novamente?
  Por onde passa o teu coração que já não faz mais barulho perto da minha porta, mas que me chamou para sair de casa tantas vezes e que, por isso, eu aprendi a gostar de ser livre?  Por onde passa o teu legado sentimental que alargou o lugar dos meus afetos para caberem os seus? A tua história é só tua; toma.  O meu espaço vazio precisa ser do que é meu, agora.




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