terça-feira, 19 de setembro de 2017

Existem mulheres que não sabem o que sentem

   Existem mulheres profanas, na bíblia. Que tramam com serpentes, que seduzem todos os homens, que se casam com o amor da irmã, que preferem limpar a casa a serem catequizadas.
  Existem mulheres que  têm medo de cães, na rua. Mulheres que têm medo de relâmpagos. Mulheres que têm medo de amar e também de não amarem. Existem mulheres que têm medo de terem medo, mulheres que tomam remédios para os seus medos, mulheres que escondem seus medos, mulheres que falam dos medos, mulheres que os enfrentam, mesmo trêmulas de pavor. Existem mulheres que têm medo do desconhecido, mulheres que têm medo de se conhecerem. Todas as mulheres têm medo de serem violadas

  Existem mulheres que dão as mãos a mulheres. Mulheres que apoiam os passos de outras mulheres, instáveis nos seus saltos altos. Existem mulheres que costuram os rasgos dos vestidos de desconhecidas nos banheiros das festas. Mulheres que amam outras mulheres; que desafiam preceitos, com seus afetos. Mulheres que  protegem, defendem, ensinam, desafiam outras mulheres. Existem mulheres que admiram outras mulheres, que se inspiram, que pintam, fazem música e escrevem sobre essas mulheres. Mulheres que se espantam com a possibilidade de serem muitas.
  Existem mulheres que são mães e não sabem o que fazer com os filhos; mulheres que não são mães e sabem o que fazer com os filhos de outras; mulheres que não são mães e nem sabem de filho algum. Todas as mulheres geram alguma existência, mesmo que seja a própria.

  Existem mulheres que choram nos pontos de ônibus, nas filas do supermercado e no escritório, quando ninguém está olhando. Mulheres que choram nos cinemas, nos velórios, nos términos, nas separações em frente ao juiz. Existem mulheres que choram na rua, em público, no meio de um discurso; desatam o nó na garganta e desabam em choro; depois se levantam vermelhas ainda.          
  Existem mulheres que choram enquanto tomam banho, mergulham ou tomam chuva, aproveitam as águas de fora para fazerem escoar as suas. Existem mulheres que fazem chorar, que não amam mais, que não querem mais, que não podem mais, que escolhem não mais. Todas as mulheres choram algum dia nem todas fazem chorar todos os dias.

  Existem mulheres que menstruam, mulheres que não menstruaram ainda e aquelas que não menstruam mais. Existem mulheres que nunca menstruaram, nunca irão menstruar e mulheres que não esperam menstruar.
  Existem mulheres que carregam pedras, algumas transportam penas e somente elas sabem o peso de cada carga. Existem mulheres que abraçam uma causa, um homem, um velho, uma criança, um trauma, uma lembrança alegre, um arrependimento ou um sonho remoto, azul, esperançoso de vida. Todas as mulheres são mulheres.

  Existem mulheres que dirigem caminhões, que administram empresas, que pilotam carrinhos de compra, que conduzem filhos, que guiam seus afetos, quando eles estão no escuro. Existem mulheres que não sabem nadar e que se lançam em águas geladas e turvas, para resgatarem a quem amam ou só por ouvirem um grito. Existem mulheres que voam sem asas; mulheres que têm asas e nunca voam e mulheres que impulsionam os voos de muitos outros.
  Existem mulheres que atravessam ruas, que atravessam outras pessoas até o outro lado da rua e mulheres que atravessam pessoas, quando falam. Existem mulheres que dormem na rua, mulheres que só usam roupas de cama muito limpas e mulheres que dormem na rua e lavam os lençóis das mulheres limpas. Todas as mulheres se cansam muito algum dia.

   Existem mulheres que usam batom e guirlanda de flores no dia do seu casamento e fazem promessa de união até à morte. Algumas morrem muito cedo, outras envelhecem com os noivos e algumas não cumprem a promessa, porque é um juramento muito longe. Existem mulheres que não se casam e não prometem eternidade, mas nunca vão embora; mulheres que se despedem, mas deixam seus cheiros, suas cartas, suas fotos de quando eram pequenas. Existem mulheres que não sabem amar e aprendem, mulheres que não aprendem, mas não desistem e mulheres que não se preocupam com um jeito certo; só amam. Todas as mulheres tentam, algum dia.

  Existem mulheres que não interrogam o espelho, mas estranham as suas vozes gravadas. Existem mulheres que não gostam de falar ao telefone, mas escrevem cartas de quatro páginas; mulheres que não escrevem um bilhete, mas conversam por duas horas sem perderem o fôlego. Existem mulheres que compram um apartamento e pagam suas prestações durante vinte anos; mulheres que pagam o aluguel de um quarto sem janela para a rua e mulheres com a casa muito grande, que têm insônia, mas não olham a lua.
  Existem mulheres que saem da aula mais cedo, porque estão tristes. Existem mulheres que não sabem o que sentem, só sentem. Tenho sentimentos por essas mulheres.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29/09, veja bem 29 de setembro e este golpe não acaba em 2017

Querida Amanda,

Esta é uma carta que nasceu deste seu texto-mulher. Ao ler, foi sendo consubstanciada esta necessidade de escrever os três primeiros parágrafos. No quarto e talvez quinto tentarei focar de uma forma literária dentro da minha limitação.

Começo esta carta pelo desabafo do Vale do Aço, que suspira com o país como um todo, suspira pelos cantos, lamenta em pequenas rodas, fala de coisas conexas e desconexas, o Vale do Aço começa a entender o que significou o fim da nacionalização de equipamentos e maquinários para a indústria de Hidrocarbonetos. o Vale do Aço acordou nesta semana com o pesadelo da liberação de importação de automóveis com aço lá de longe feito com o minério daqui do nosso quintal. O Vale do Aço que pensa e não assiste o JN chora, entristece, desemprega e pena em momento catatônico.

O poder do lado negro da força acabou com o CRAS a partir de 2018 - A assistencia social, ferramenta de melhoria da qualidade de vida dos mais sofridos experimenta a morte pela força de uma elite com cérebro doente. O poder do lado negro da força também devolveu a valores de 1995 o investimento em Ensino Superior nas Universidades Federais - e outras coisas mais que virão.
(http://flacso.redelivre.org.br/files/2013/03/1109.pdf pg 197)

Com a consumação oficial do entreguismo a troco de uma mediocridade imbecil nesta semana, postei hoje e aqui reproduzo que estamos fadados a virar um Porto Rico, quase primeiro mundo, mas pena que é negro, mulato e latino quase branco:
"Mas no fundo / do fundo do fundo / bem lá no fundo / tateando no escuro /
entre pães e circos, / o que começou como Porto Seguro / terminará como Porto Rico."

Falemos agora, depois desta consubstanciação temática, do que eu vi no seu texto além da dor, da tristeza, da melancolia e da magia feminina.

Eu vi Teresa, e não uma Teresa destas que andam por aí, todas as Teresas são lindas, mas a que vi quando discorria e consubstanciava o sentimento, foi a evolutiva, a que ascendeu ao sentimento do olhar masculino, que vai descobrindo-a, desnudando-a, à medida que nós vamos amadurecendo, por que Teresa são todas vocês - a Teresa de Manuel Bandeira:

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Um abraço

Paulo Abreu


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, último dia, deste setembro de 2017

Querido Paulo,
que missiva! Que desabafo bonito. Tem sido muitíssimo desolador estes tempos obscuros (de ações, ideias, afetos-escassos)e com o risco do duro silêncio se aproximando, de novo. A arte que não pode afetar, a religião (no singular como bem sabemos) invadido espaços que não cabem a ela, os "ismos" cada vez menos velados. Como foi que permitimos isso acontecer? Irão nos calar? Bom, é tudo que eles querem.

O que é bom de tudo isto, se há algo de benéfico, é partilhar da dor, mas também da esperança, do sentimento de resistência, da necessidade dos afetos e também das ações. Terça-feira passada foi a data de aniversário de um brasileiro que admiro muito e que mesmo que não esteja aqui, ainda incomoda muito esses "istas". Lembro-me muito de Paulo Freire quando a desesperança ameaça, "o mundo está sendo" é uma máxima consoladora e ao mesmo tempo motivadora. Temos muito a fazer.

E que linda a Teresa de Manuel Bandeira (um país com um poeta desses não pode se apequenar jamais! rs), no terceiro encontro, o eu-lírico não viu mais nada...é maravilhoso isto!
Obrigada pela carta tão honesta, tão bonita, tão emocionante. Grata por tão terna e agradável visita.
Sigamos Paulo, sigamos!
Abraços