sexta-feira, 14 de julho de 2017

Não bastaram cortinas

   Quando comprou uma cortina azul para sua sala clara demais, ele perguntou para ela se combinava com os móveis, com a parede e com o quadro. Achou-a bonita, porque era azul e voava alto, quando ventava, na sala quase vazia dele. Nunca pensou se combinava. Era um presente para ela que, pela manhã, se escondia da claridade no fundo da sala e à noite se assustava  com a presença dos vizinhos do prédio da frente, compartilhando da sua intimidade.
- Quanto eles terão visto?
    A cortina azul era o gesto material de que ele queria que ela ficasse. Por isso a cortina azul pareceu combinar mais com eles do que com os móveis, a parede ou com o quadro. A cortina na janela da sala era o que ficava quando ela procurava e não encontrava mais  a mesma delicadeza e cuidado do dia em que ele instalou o tecido, protegendo  sua vida privada. Às vezes o quadro estava torto e ela deitada no sofá tinha preguiça de colocá-lo no centro, às vezes não ter muitos móveis que ocupassem a sala muito ampla, dava impressão de que ela própria era vazia, ficava melancólica, querendo que um tapete, uma estante, uma mesa de centro ocupassem suas ausências; mas se consolava com a cortina azul de cuidado dele.

  Mas não foi só ela quem se prendeu ao gesto da cortina. Ele, também, quando se sentia em falta ou afastado dos olhos de felicidade dela, tentava recuperá-los noutros gestos, noutras cortinas. Instalou uma bege, com um tecido fluido como a da sala, no quarto deles, enquanto ela viajava. Surpreendeu-a, na volta, quando perguntou se a cortina bege combinava com o espelho, a luminária e os móveis. Ela achou a cortina triste, pois quando ventava, refletia no espelho e ela se sentia no deserto, durante uma tempestade, perdida em areia e solidão. O sol no quarto sempre foi  menos intenso e nenhuma janela dos prédios vizinhos ficava de frente para a intimidade dela. Gostava da liberdade antiga da janela do quarto, mas a cortina bege era a continuidade da azul; era o segunda vez que ele pedia para ela ficar, sem dizer: fique.

  Nas tempestades de areia do quarto, no azul prolongado do vazio da sala e na melancolia  privada de luz e testemunhas, cortina nenhuma era capaz de ocultar dela mesma a imagem de um quadro para sempre torto. A experiência de viver numa casa que só sentia o amor quando estava na sala  e que no quarto, era já um afeto-remendo, uma tentativa de continuação do que só era inteiro num cômodo, quando a cortina azul era levantada pelo vento, passou a pesar tanto que os voos das cortinas despertavam-lhe inveja e dor.

  Ele não sabendo o que fazer com a casa sem a alegria dela e com o amor que não passava nunca da sala,  fez a tentativa de um terceiro gesto salvífico. Instalou uma cortina branca no escritório. Só  o branco traria de volta o frescor da novidade, dos começos, das histórias que não têm as frustrações do passado, os desencontros, as luzes em falta ou demasia,  o desequilibro na balança do privado e da liberdade. O branco pendurado na janela, traria para a casa a harmonia em falta. A cor branca que combina com qualquer parede, móvel ou amor. O vento branco nos livros, nas duas cadeiras, que começaram grudadas e foram se afastando lentamente, até estarem em lados opostos num cômodo muito pequeno. O vento branco nos porta-retratos, que ninguém nunca mais pegou para trocar as fotos; era o único que poderia trazer à casa, o que os outros dois já não ofereciam. Quando ela chegou ele perguntou o que ela achava.
- Combina?
- A cortina?
- Sim, a cortina branca no escritório.

  - As cortinas sempre combinam. O que não combinam são os o meu atrasos com o horário exato do  seu relógio inglês. Não combinam meus dedos longos com o seu pescoço curto de tensão. Não combinam os meus planos de saltar, voar, cair e subir de novo, com o seus de profundo repouso e inércia. Não combinam os meus spaghettis à bolonhesa com a seu simulacro de massa, feita de abobrinha. Não combina a minha aula de natação com você se afogando em desesperanças que nunca acabam. Não combina a sala vazia da nossa casa, com tudo aquilo que eu trouxe quando cheguei e preferi deixar do lado de fora, porque não se pareciam com nada do que era seu. Não combinam os dias das nossas coragens e os das nossas covardias, a gente nem aparece mais para mostrá-las - nosso problema de agenda. Não conversam o meu juiz e o seu. Meu crime e a sua acusação, minha inocência e a sua defesa. Minha culpa e o seu foro privilegiado.

  - Não combina o solo vermelho do meu jardim com a sua muda de planta estrangeira de raízes frágeis. Não combina o meu rock inglês de uma noite aleatória com o seu futebol de toda quarta-feira. Não combina o seu desejo de que eu fique só pelas cortinas; o seu esforço em escolher as cores dos ventos que entrarão na casa, mas a ausência de preocupação com o vazio da sala que nós nunca conseguimos preencher. Não combina a minha festa pela independência com a sua comemoração pela dominação de um território no jogo que eu nunca entendi.
  As cortinas não puderam esconder o que não gostaríamos de ver agora. A cortina azul da sala foi meu melhor presente, eu sou grata por ela, mas as outras duas foram as continuações de uma coisa já completa. Nós nunca fomos além da sala.

- Fui ficando por uma cortina azul. Quanto esforço não fizemos para não soltar o que não já não era mais nosso, mas que custamos a entender?  Eu não quero mais que o sol não entre na minha casa pela manhã, eu não me importo que os vizinhos me vejam comendo, lendo, chorando, varrendo a casa, aguando as plantas, me despindo, cortando as unhas ou amando. Desisto das cortinas e do vazio de entrar pela porta e não saber mais o que fazer para não ir embora. Não combina mais o seu desejo de que eu fique com a minha sensação de que eu nunca entrei completamente. O quadro torto da parede da sala sempre se pareceu muito comigo. Fique com a cortina que você me deu, se eu a levasse eu levaria todo o amor, mas também o vazio de tê-lo só num dos cômodos da casa. A cortina branca combinou com o escritório, mas não apagou nada, nada. As cortinas foram os seus esforços, os meus eu nunca instalei só na janelas. Ficavam por toda a casa, perseguindo-o, cuidando, ouvindo-o, mas quando falavam, você estava ocupado demais cobrindo as janelas; longe demais para ouvir seus gritos.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 03 de agosto de 2017

Prezada Amanda

Quanto tempo, que este carte encurte o espaço. Mas será breve, hoje não serei prolongado.

"Fui ficando por uma cortina azul ..."

O que mais fazemos pela medo de mudar? Muita coisa, quase tudo, até a cadeira de uma festa para 2 mil pessoas passa a ser coisa e propriedade nossa quando nos sentamos nela. Mudar - esta é a chave.

Um abraço

Paulo Abreu (sim, quando assustei já era quinta-feira)

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 04 de agosto deste temeroso 2017

Caro Paulo,
suas visitas são sempre muito comemoradas, mesmo que sejam mais rápidas como esta.
Sim. Mudanças, a inevitável impermanência das coisas, pessoas e sentimentos parece ser uma assunto recorrente por aqui... ainda quando a autora nem se dá conta no primeiro instante.

Obrigada pela alegre visita.
Abraços,
Amanda (sexta já!!!)