sábado, 22 de julho de 2017

A mínima felicidade absoluta

   Não é um estado em que se mora definitivamente, é visita ocasional, morna, pacífica e mesmo que não dure é muito comemorada. Não é uma música que se escute com frequência, que se dance diariamente, mas quando toca, o corpo reconhece e se torna repleto da substância por, pelo menos, uma coreografia inteira. Não é um cheiro só que acompanha o olfato indefinidamente, mas é numa rua, de repente, num sopro que ele vem, preenche de plenitude os pulmões e vai embora. Não é para ser demorado, guardado também não. É tesouro fluido, que enriquece patrão e operário numa mesma medida, sem que eles nunca saibam um do outro. Não há imagem que confirme, palavra que ateste, não há carimbo ou assinatura; é secreto o terreno, mas público o seu efeito.

  Não querer descolar dela é normal, é humano, é esperado, mas saber que se desprende de nossas mãos por períodos indeterminados é entendimento que a experiência dos afastamentos e aproximações trazem. É preciso ter visto seus nós e, depois, cordas partidas, esgarçadas no chão, por algumas vezes, até saber que é um movimento do qual não temos comando. É um barco mais ou menos a deriva que só nos socorre na sua própria precisão e não na nossa. Achar que vai se afogar sem o seu resgate, bater muito os braços e gritar socorro não a sensibiliza; é ela quem sabe quando vai jogar o bote. Nunca morremos afogados sem vê-la, suspeito.

  A menina tem oito anos e acaba de perder o pai. Na primeira vez que a vi depois da perda, meu corpo inteiro doeu, os músculos se contraíram e eu, ainda, tentei um meio sorriso, alguma palavra que não apareceu e me deixou sozinha com ela, muda. Inteligente e generosa ela me poupou da maturidade e se jogou na minha cintura para ser abraçada. Possivelmente, porque reconhece a nossa irmandade de dores, estamos ligadas por essa ausência a qual não se acostuma, mas ultrapassa sem nem sabermos como. Despedir-se definitivamente de um dos pais na infância é rasgar partes do álbum que jamais serão coladas. Mesmo que as fotos do ausente estejam expostas, que uma história ou duas de amigos e familiares sempre se repitam nos almoços, não ter a novidade de uma pessoa de quem somos feitos é uma dor que não termina nunca. É como se o tempo nos levasse para longe de alguém que sorri eternamente num porta-retratos; até chegarmos a ser mais velhos que o nosso próprio pai.

  Ela merecia ter vivido a velhice do seu pai, tê-lo contrariado, desiludido, ter sido uma filha ruim, mas a única possível e ainda amada. Ela poderia ter descoberto numa fase, num instante muito específico a fragilidade do seu pai, ter chorado com ele e por ele, ter se afastado e voltado, armada de coragem e amor, tê-lo acolhido. Os filhos merecem a experiência de estender os braços aos pais, quando eles vacilam pelo caminho.
  Os pais e os filhos são feitos dessas confusões, desses emaranhados que, de longe, ninguém desfaz; desses choros, beijos, desilusões e orgulhos. Ela tem oito anos e não terá mais o pai, figura ausente ou não, não importa; não importaria a ela se pudesse escolher. Ela o preferiria ausente por longos espaços de tempo, a não ter uma história com ele. Uma vez por semana ou a cada quinze dias, com pensão atrasada e justificativas constrangedoras, ainda era o pai que era dela e de quem, agora, ela não terá nem a espera.

  Depois dos abraços, dos silêncios, dos degraus que enfrentamos as duas, quis dar-lhe um presente. Eu mesma recebi alguns quando a perda me atingiu quase naquela idade. Receber regalos num funeral foi um tipo de reconhecimento da minha identidade infantil e eu quis dar o mesmo a ela. É óbvio que  uma tartaruga, um gato de pelúcia e um globo de inverno não curaram a minha angústia e desentendimento de morte, mas acenaram para algum lugar em mim. Jamais esqueci de cada uma das felicidades quentes que eu recebi no mesmo dia que perdia páginas irrecuperáveis da minha história. Fui amada e me senti amada; isto é sempre o maior consolo, o caminho mais iluminado quando nos afogamos no escuro. Dei a ela três suculentas delicadas, em três vasos muito pequenos que comprei numa floricultura do centro. Ela gostou, mas quis vê-las juntas.
- Separadas, assim, são bonitas, mas tristes.

  Concordei. E, logo, pensamos num jardim, num pequeno jardim de inverno. Numa bacia velha, com a terra que pegamos emprestada do jardim do prédio, plantamos as três suculentas, lado a lado, cercamos com pedrinhas brancas, que também nos emprestaram sem saber, cercamos com um pouco de grama, colocamos dois bancos da casa de bonecas dela e inventamos de passear e nos sentarmos neles. Passamos a tarde enfeitando o jardim e descansando em dois bancos rosas mínimos, que eu nunca tinha me sentado antes. Quanto mais enfeitávamos o jardim, mais eu tinha vontade de ligar para o pai e dizer o quanto a sua filha era maravilhosa.
  Recriei um jardim em miniatura e fui feliz com ele. Queria dar um pai a ela, queria dar o meu próprio se pudesse; ela só tem oito anos e já experimenta estar jogada ao mar e ser subitamente segura por um bote. Ela não verá os cabelos do pai caírem, embranquecerem, os pelos do nariz e orelha se espessarem, não vai ter com ele conversas leves ou discussões submersas em lágrimas. No álbum, seu pai é aquilo que a sua memória reconstruirá, mas no nosso jardim existe uma plenitude de ar, uma música que ela já ensaia dançar, um lugar que a visitará em dias imprevisíveis.

  Toda vez que eu me lembro do que ganhei quando uma ausência se fez na minha vida, é como se o consolo viesse, de novo, me levantar. Não compensa, nunca compensou,  é claro, a minha falta sempre esteve aqui, cravada como uma marca do destino de uma ausência jamais completada. Mas foi a mínima felicidade absoluta possível naquela vez e noutras tantas. Eu, que não posso devolver seu pai, ajudo com o jardim onde moramos por algumas horas e do qual ela se lembrará um dia. Mesmo quando as águas são muitíssimo fortes, quando as correntes nos carregam para mar aberto, em algum momento ela virá e nos resgatará de um afogamento. Num barquinho branco com letras azuis, a mínima felicidade absoluta nos faz querer nadar até a margem de novo. Ela vem, ela sempre vem.




4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 11 deste assombroso agosto de 2017

Querida Amanda

Ando sem tempo e sem esperança. Vejo um país à deriva, comandado por piratas treinados no reino de sua majestade tal qual Edward Teach, aquele fiel ladrão do século XVI à serviço da corte imperial, com a alcunha de Barba Negra.

Mas eu preciso vir aqui para perceber que ainda há pessoas boas no mundo, com a sensibilidade humana. Dia destes me peguei pensando em você, da forma que reagiria ao texto que li num excelente site que recomendo - http://ano-zero.com - ao abrir o site, vai descendo a página até encontrar TIM URBAN, um escritor, e ali há um texto dele, ah! Amanda, você tem que ler - "Série Inteligência Artificial"

O que há neste texto, aliás neste longo longo texto? Há uma projeção da morte da humanização, da percepção do outro, dos sentimentos, da alma. Assusta acreditar que pessoas acreditarão naquilo ali, que parece tão lógico, mas aí pensei - não contem com a Amanda Machado (foi assim que você entrou numa linha de pensamento lógico meu pela primeira vez).

Não há o que falar deste texto de hoje - da ausência, do amor filial/paternal, da loucura de se ver só, sem o pai, sem a força do pai. Passou exatamente a mensagem que queria, sem subterfúgios, sem pieguices. Emocionante - parabéns Amanda.

Abraços

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 12 de agosto deste temeroso 2017

Paulo - condutor honorário das boas reflexões - que texto, você me trouxe?!

Demorei a respondê-lo aqui porque quis, primeiro, ir até lá e conferir a sua sugestão, afinal, nunca me decepciono. Comecei a leitura ontem à noite, já bem tarde, continuei pela madrugada, mas era muita informação, novidade, angústias...era muita coisa a se pensar, meu caro! Voltei hoje à tarde, recomecei a leitura, ao som do Aznavour (o que acho que ajudou a suavizar minhas impressões) e pude terminá-la, ao menos o texto.
E o que eu achei? Bem, tudo muito crível, em alguns pontos muito desesperador e, ao final, essa constatação de que somos uma humanidade completamente exposta, vulnerável e ignorante do nosso próprio futuro. Lançados num mar de possibilidades e quase sem nenhuma autonomia sobre os nossos destinos. A cada parágrafo terminado, eu pensava: - Mas e a cultura? E as emoções? O artificial não pode reproduzir uma emoção, não como a que nós conhecemos...

Mas, enfim, você me presenteou com isto: perguntas. Não sei se foi o Aznavour ou qualquer outra conexão que eu fiz entre uma linha e uma emoção minha, um futuro distópico e uma memória acalentadora; ou sei lá. Não me assustei, Paulo. Acho sim, completamente possível essa revolução da IA e tudo mais que virá com ela e talvez esteja muito próximo sim, mas tenho uma fé muito ignorante, às vezes, uma fé nos descaminhos, naquilo que não é programado e que quase sempre nos leva a outro lugar que não definimos antes, mas que é bom. Não sei...acabei de ler e ainda não sei exatamente o que pensar.

" (...)Isso nos deixa olhando para a tela, confrontando esse poderoso conceito de uma Superinteligência Artificial, ou SA (inteligência artificial que é muito mais esperta do que qualquer humano sem exceção), desenvolver-se possivelmente enquanto você ainda está vivo, e tentando descobrir qual emoção supostamente deveríamos sentir quando pensamos a respeito disso(...)". Este trecho descreve bem o que eu estou sentindo agora. Enfim, que ótima tarde você me proporcionou.

Grata, Paulo. Sempre! Seus regalos são muito estimulantes, preciosos.
Abraços,
Amanda

Paulo Abreu disse...

Amanda,

Acho que ainda lerei textos fantásticos neste território humanitário da sua loucura literária sobre estes novos e temerários conceitos de vida. O que é a vida?

Como será o futuro que já chegou? loucura demais para uma noite de inverno aos cuidados das filhas aqui em BH para curtir o domingo com elas.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Paulo,
suas referências são sempre ótimas companhias, na calma ou no desassossego.

Está sob ótimos cuidados, isto é bom, muito bom. Ótimo domingo com elas e um feliz dia. Abraços