terça-feira, 9 de maio de 2017

A última vez que escreveu

   Fazia frio, chovia lá fora e o cachorro latia, porque seu dono não veio mais. A última vez que escreveu, o pai morria, juntava os documentos para levar ao serviço funerário e um homem a atendia como se pudesse amá-la, porque teve pena dela, que sozinha, enterrava seu pai. A última vez que escreveu, era maio, tinha tanto medo de sair lá fora, à noite,  de receber as mensagens invasivas, de não poder se sentir completamente livre nunca mais e, ainda, se sentir culpada por isso, por isso só escrevia. A última vez que escreveu, passava um filme antigo na televisão, assistia a atriz que era bonita e tinha olhos castanhos, quis fazer algo tão bonito quanto o castanho dos olhos para não esquecerem-se dela, por isso as palavras escorregavam castanhas da lapiseira até o bloco.

   A última vez que escreveu, a irmã dava conselhos e parecia triste, como se ela é quem precisasse de direção, por isso escreveu detalhadamente as legendas de um mapa, já que não saberia desenhá-lo e disse que ela poderia segui-lo se quisesse. A última vez que escreveu, fez doce de abóbora e sentiu a herança da avó nas suas mãos, aquela que ela mesma ia atrás. A última vez que escreveu, queria se mudar para o Chile ou Uruguai e não sabia como começar a fazer as malas e nem sabia ser estrangeira, por isso escreveu, para aprender a caminhar num mundo que não era o dela. A última vez que escreveu, procurava escolas de dança na internet na sua cidade, caso não se mudasse ia ser dançarina, porque sempre achou que era um destino. A última vez que escreveu, saltava os pisos molhados da cozinha e se lembrava de como era bom jogar amarelinha. A última vez que escreveu, abria uma garrafa de vinho e bebia enquanto cozinhava.
-  Uma garrafa é o suficiente para um jantar inteiro.
  E se o convidado só chegasse depois do último gole, ia comer o jantar frio e ter uma companhia bastante alegre.

  A última vez que escreveu, tinha uma amiga em Jacarta, outra em Algarve, outra em Macaé, uma outra tinha morrido aos 22 e todas faziam muita falta, no café da tarde. Então, depois do primeiro gole, imaginava-as voltando, inclusive a que havia desaparecido aos 22. A última vez que escreveu, ia para o banho, viu um papel em cima da mesa e não o deixou sem uma frase sua que pudesse, quem sabe, entreter alguém. A última vez que escreveu, lia um romance de uma escritora americana jovem sobre uma botânica holandesa que amava mais plantas do que gente e que se dedicou aos musgos porque não era bonita, quantas mulheres não são o que são porque não eram bonitas? A última vez que se olhou no espelho ela também não era e nem, ao menos, se dedicava à botânica, mas escrevia e por isso, sentia-se livre.

  A última vez que escreveu, lavava um vestido branco que usou uma vez no último verão e enquanto o deixava de molho para clarear uma mancha, olhava para o tanque e escrevia no quadro de recados da cozinha uma música da qual gostava "eu não quero ver você fumando ópio pra sarar a dor". A última vez que escreveu, assistia a um filme da Nova Zelândia e chorava com a vizinha da amiga da protagonista que não tinha sequer uma fala. A última vez que escreveu, não estava bem humorada e nem disposta a ser simpática com ninguém ou a responder a qualquer pergunta, mas saiu do apartamento e o Davi perguntou qual era o herói favorito dela e ela não podia deixá-lo sem resposta. Se iluminou depois dele.

  A última vez que escreveu, olhava para as sombras que faziam no quarto e não quis atender ao telefone, porque não queria perder as imagens na parede. A última vez que escreveu, alguém falava que o tempo não era aquele e que talvez tivessem uma outra chance no futuro e ela não chorou, nem quis saber de amanhã, só escreveu e não olhou as horas no relógio digital em cima do criado-mudo.  A última vez que escreveu, lutava boxe com uma memória que a perseguia, ia ao chão e voltava, pensava em desistir e continuava, até, finalmente, abate-la com um gancho de direita no queixo. Nesta luta ela saiu vitoriosa, mas sempre fica a possibilidade de revanche; tem treinado bastante, especialmente as defesas. A última vez que escreveu, fazia um cachecol colorido para a sobrinha mais nova e escutava jazz no celular.

   A última vez que escreveu comprava uma leiteira nova na loja do centro e uma senhora pediu ajuda para escolher uma panela de pressão, ela a ajudou e escreveu sobre a mulher, na fila do caixa, para nunca mais esquecer, dos seus olhos pequenos, seus óculos redondos, uma blusa cinza de lã suja de feijão e a sua confiança em uma desconhecida para continuar cozinhando.  A última vez que escreveu, o vizinho do apartamento de cima gritava com a sua mulher, o filho chorava, alguém gritava que chamaria a polícia e ela escrevia para o caso de ter que abrir o portão para os policiais e contar essa história. A última vez que escreveu, a noite durava bem menos do que antigamente, o álcool durava mais e a música era mais anos 80 do que em anos passados.

  A última vez que escreveu, tinha medo, de novo, e quando as letras, as palavras, ocupavam o espaço em branco, de repente, parecia coragem. A última vez que escreveu, não era uma canção de ninar para uma criança desconhecida que ela acolhia nos braços e queria dar um mundo melhor, ao menos, uma noite de sonhos bonita; mas era um grito. Uma voz em desespero e ninguém escutava, por isso, escreveu. A última vez que escreveu pesquisava sobre sementes de romãs, porque um dia teria uma casa, um jardim e, ia sim, plantar romãs, junto com hortênsias e tudo se encaixaria um pouco, quando olhasse para o seu jardim. A última vez que escreveu tinha 8 anos, num caderno florido, tinha 12, num caderno com caveiras, tinha 16, num bloco com capa de couro, tinha 21, num fichário estampado, tinha 28, em folhas soltas, tinha 35, em um computador na escrivaninha, tinha 42, num notebook, tinha 61, num smartphone, tinha 70, num caderno florido, tinha 81, num caderno com caveiras, tinha 93, num bloco com capa de couro, tinha 107, num fichário estampado e depois só em folhas soltas.
  A última vez que escreveu, pediu um café grande e um pão de queijo e queria atravessar o mês sem dívidas, o oceano sem chorar, um coração sem sangrar, uma outra vida sem ferir, um papel sem rasgá-lo. A última vez que escreveu, a vodka já tinha acabado, todos já tinham ido embora e um rosto bonito sonhava no seu sofá. Por isso escreveu, para não se esquecer que tudo que ia embora, um dia estaria escrito para sempre.



3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais dez deste maio de 2017

Amanda,

Primeiro dizer que eu gosto de vir aqui, ler as crônicas e gosto do que leio. Para ler este texto aqui, fui e voltei umas quatro ou cinco vezes - um espanto como diria o Paulo Henrique Amorim. Não que fosse difícil ou lento. Nada disto - é uma mulher traduzindo a dualidade das pulsões - vida e morte, de uma forma nua, de uma forma transparente. Muito bom. E quantas vezes fizemos algo pela última vez? Quantas mortes celebramos ou choramos pelos nossos feitos? Fiquei ali um tempo parado pensando nisto.

E o serviço aqui, todo acumulado, reunião societária no sábado, viagem na segunda e eu aqui pensando pensando pensando.

E hoje, como sempre diante do stress, vagueio por aí - tomei a liberdade de ler um blog que você acompanha - a moça chama Adriana Garcia - não só li um monte de coisas lindas empoemadas como assisti à sua entrevista no Youtube. Puxa vida, como tem gente boa de serviço na pátria amada salve salve, apesar de alguns outros estarem deitados eternamente etc etc etc.

Então é só isto. Nada de ficar te incomodando muito. Já basta o caos vigente para me fazer refletir sobre o quão insidiosamente escusa pode ser uma ideologia.

Um abraço

Paulo

PS - gostei de ter colocado a moderação - infelizmente tem pessoas que se acham, e o fazem como anônimas ou com nomes falsos. Não sei se isto ocorre aqui, mas é uma praga mundial - os anônimos revoltadinhos da net.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, onze dias do mês de maio de 2017

Caro Paulo,
Sua presença aqui é sempre uma alegria e as conversas com café, mais do que agradáveis, já são necessárias. Que bom que o texto não o afastou, não o fez desistir numa primeira leitura...e nem a agenda repleta não impediu suas idas e vindas.

Que maravilha você conhecer Adriane Garcia através do meu simplório espaço! Adriane é uma poeta pela qual nutro grande admiração.
E nestes tempos de desilusão com os desmandos e o despertar mais cínico dos nossos fascismos arraigados, é bom ver brasileiras que resistem na beleza e na generosidade da poesia. Veja que preciosidade do livro dela "Só, com Peixes" (2016):

"Aleijão

Um peixe é um pássaro
Sem asas
Mas um pássaro é um peixe
Sem águas
E não são como nós incompletos
Porque o pássaro
É um contente emerso
O peixe
Bem submerso
O homem escava
Submarinos
E se alada
A descontento:
os pés na terra"

Abraços

PS: A moderação dos comentários foi um dilema ideológico, queria muito que, ao menos neste blog, todos tivessem a possibilidade de falar/comentar o que bem entendessem e serem automaticamente publicados, mas a minha democracia também passa por um momento crítico...veremos se um dia poderei, novamente, abrir completa e irrestritamente as fronteiras.

Paulo Abreu disse...

Amanda,

Que poema, hem!!!! Que poema!!! Palavras vívidas!

Paulo