segunda-feira, 24 de abril de 2017

Nós somos a história que ela não conta

    Repousa a revista no colo, o sol bate nas figuras e reflete alguns borrões na parede branca, ela afasta o cobertor e sorri, enquanto tenta segurar os reflexos, que se afastam mais a cada vez que ela se move. Essa é a perseguição da qual ela se ocupa diariamente, nos últimos anos: tentar segurar os borrões que sempre escapam. Não sei se um dia me esquecerei dessa cena ou, quem sabe, lembrarei-me dela eternamente. Não sei, não sei. Vejo e gosto, demoro nos detalhes, tenho o mais profundo respeito por tudo o que é dela; especialmente agora que tenho tido cada vez menos. Quando não compreendo o que ela diz, quando não sou capaz de entender seus desejos, quando ela parece confusa e não sabe o seu ou meu nome, busco os seus olhos e nos encontro lá, sem trapaças nem enganos; as duas ilesas nos dois círculos castanhos brilhantes dela.

   O sol vai embora, a revista cai no chão, ela se ajeita na cadeira sozinha, puxa o cobertor, cobre as pernas novamente e, de repente, se importa com a minha presença:
- Vem cá, senta mais perto aqui que eu vou te contar uma história.
Então pergunta de chuva:
- Acha que o tempo fica firme até mais tarde hoje? Viu a previsão já?
 Pergunta sobre o homem do gás:
- Separou dinheiro trocado? Eles não gostam de receber notas grandes. Veja com ele se não tá vazando, essas coisas explodem e a gente voa em pedaços. Olha isso direito!
Pergunta se comprei pão, se trabalhei muito, se os meninos foram para escola (que meninos são eu nunca sei, mas digo que foram e ela parece aliviada) e a história mesmo, essa nunca veio. Há anos que me aproximo depois da promessa e há anos a história não nasce, não chega, não cumpre com o anunciado.

   Eu sempre venho, mesmo quando eu não quis aceitar a condição que evoluía tão rapidamente, mesmo quando achava que poderia reverter,  que um dia se estabilizaria, eu desafiava os prognósticos e subia as escadas cheia de ilusões e fé, mas o quadro seguiu quase exatamente como o previsto e eu, continuei a vir, mesmo quando os degraus eram de desilusão. Já tive muitos medos; de perder nossa conexão, de também não reconhecê-la, desde que ela começou a esquecer partes de mim, de assistir nela uma possibilidade futura, de não suportar o apagamento de cada traço seu. Tive medo de desistir de tentar ouvir a sua voz, cada vez mais baixa e rara. Hoje ela é muito mais gestos e expressões faciais do que linguagem oral, aprendi um novo dialeto para  frequentar a sua ilha.

   Mas depois tive muita coragem também, fui subindo as escadas com raiva, força e decisão, entrando na casa vazia, ocupando espaços, decorando suas ausências, perfumando cada lugar abandonado; o importante é que a casa vazia nunca esteja completamente desamparada. E ainda tem a promessa de uma história que ela nunca chega a me contar, não sei mesmo se ela também se esquece no percurso entre a promessa e a narrativa ou se é uma estratégia para que eu venha com expectativa e me aproxime mais para ouvi-la.
   Ela, a feiticeira, encantadora dos dias, tecendo palavras, seduzindo reis e adiando a própria morte.

   Às vezes, quando estou no trabalho, no caminho da academia, durante uma corrida na rua ou passeando entre as gôndolas de um supermercado no bairro eu imagino uma história inteira que ela poderia me contar, alguma coisa escondida, um amor proibido, um crime, quem sabe? Uma ilegalidade inimaginável, uma atividade ocultada, um ato heroico, que a modéstia nunca a permitiu antes compartilhar ou qualquer observação sobre a sua vida ou até sobre a minha própria. Algo que pudesse me ferir irremediavelmente ou me redimir de todos os meus fracassos. Uma história qualquer que anunciasse que ela ainda está ali, que eu não preciso nos buscar nos olhos dela, que todo apagamento é temporário e que depois de amanhã ela reconhecerá a vida que construiu e aquela que inevitavelmente se apresentou sob a sua janela. Mas a história não vem. Mais um dia de promessa não cumprida

   Eu que amo o que ainda não veio, ela que se despede lentamente do que ainda não se foi. Somos as duas partes de uma casa, onde derrubam paredes e eu penduro os quadros. Todos os dias ela esquece um pouco mais, a cada dia eu me sinto mais responsável pelas lembranças dela. Nós já somos uma história. Talvez um dia  alguém nos narre: nós duas entrelaçadas pelas memórias que escapam dela e se aconchegam cada dia mais em mim. Queria que não me esquecesse, queria que não se perdesse de si, queria que nunca fosse embora; talvez não vá nunca.

   Olho para a mesma cadeira e, de repente, os cabelos brancos desaparecem, os remédios não existem, o cobertor e a cadeira são banidos das nossas vidas e ela  tem cabelos castanhos e a agilidade de jovem, me chama para almoçar, rega a samambaia e alisa o cachorro com as costas do pé, equilibrando-se sobre uma das pernas. Ela é a minha história, que não terminará quando for embora, eu sou a sua, que mesmo que ela não se lembre nunca, continua perseguindo os seus borrões na parede branca. Nós somos a história que ela não me conta todos os dias.


 

2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 25 deste abril longo e tenso do ano da graça de 2017

Prezada artesã das filigranas femininas

Que dor é esta que nos comove? Perder a memória, a identidade do eu com a vida, incluindo a minha - será um salvo-conduto para quando chegarmos no outro lado do lado do lado do lado do lado até um infinito de lados?

Certa vez estava numa sala de espera de uma clínica. Ao meu lado mãe e filha, a mãe entre 65 e 70 anos e filha na casa dos 40/45. Conversavam entre si e per si com seus místicos smartphones (meu Nokia nem se abala, aliás nem toca - muito).

A certa altura, a mãe perguntou a filha - mas eu terei que entrar com você? Precisa mesmo disto?
A filha me buscou com os olhos pedindo socorro. Sorri e entrei num ambiente estranho - duas mulheres fechadas entre si e per si estavam me convidando a entrar no seu mundo.
- Olhei para a mãe e disse algo mais ou menos assim - Como a senhora pode fazer uma coisa destas com sua filha? Ela é a caçula?
- Antecipou a filha - pior do que caçula - eu sou do meio.
- Então eu a apoiei - entendo verdadeiramente sua situação, pois vivo o mesmo dilema.
- A mãe calada.
- A filha falou do irmão mais velho, da proteção excessiva, dos mimos, da irmã mais nova a caçulinha querida ...
- Pensei comigo - entrei em areia movediça - toquei numa ferida aberta.
- A mãe ficou ali com o olhar perdido, já com o per si desligado e zelosamente guardado na bolsa, tomou a mão da filha, e de uma forma que só os idosos sabem fazer, disse de maneira reta, sem rodeios, sem culpa, como uma confissão há muito perdoada por ela mesma.
- Fulana, quando você foi embora, eu levei muito tempo para amar a sua irmã ...
- Silêncio total na sala - só nós três - entrada da noite.
- A filha permitiu lágrimas - mamãe eu nunca fui embora.
- Foi sim e eu sempre te amei mais que ela.

Depois disto não houve mais diálogo e ficamos ali mudos, em contemplação ao vazio da memória ou não (nunca saberei) até que fui chamado.

O que há do outro lado do lado do lado do lado?

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 26 de abril de 2017

Caro Paulo,
que narrativa belíssima esta sua!

Acho que dor de ver alguém se perder e nos perder é infinda. Quem sou, se ela não sabe mais de mim? Quem ela é, se não sabe mais dela?

As relações entre mãe e filha(s) são desses emaranhados difíceis de compreender, especialmente quando não fazemos parte do novelo. Mas são lindas.
Abraços
Amanda