segunda-feira, 3 de abril de 2017

Não sei onde uma onda cabe

   São duas meninas e parecem ter a mesma idade, camisetas azuis com o escudo da escola, cabelos trançados, com elásticos coloridos nas pontas. Se não são irmãs, têm a mesma cuidadora, que trançou habilmente os fios das duas cabeças. Têm cerca de oito ou nove anos e muito sono. Já são quase sete da noite, devem ter entrado na escola antes da uma da tarde e saído às cinco, agora dormem no ônibus, lado a lado. Olho-as dormir, sono pesado de criança, quase invejo tanta entrega num descanso, em um espaço público lotado. A menina do canto, perto da janela, parece ter um sono ainda mais relaxado, têm os braços ao lado do corpo e as palmas das mãos viradas para cima, a cabeça escorrega no vidro, alguém aperta a campainha, o ônibus para, descem e sobem passageiros e a cabeça dela continua a lustrar o vidro delicadamente. A essa hora o trânsito é lento, sem muito perigo de freadas bruscas, caso contrário, estariam completamente vulneráveis as duas.

  Eu já olhava para fora do ônibus, quando a menina da beirada acordou, procurou a mochila no seu colo, que já quase caía, a puxou para si e olhou rápido para o seu lado, acho que foi quando se lembrou de que estava no ônibus e que a companheira estava tão sozinha quanto ela. Ainda não totalmente desperta, apertou os olhos e conferiu a amiga e a sua mochila, ficou alguns minutos de olhos abertos, acostumando-se à claridade, conferiu a paisagem do lado de fora, acho que para localizar a que altura iam, ajeitou a mochila da amiga e continuou olhando o sono dela. Passou uma das mãos em volta da cabeça da menina que dormia e começou a fazer afagos nas tranças dela. Olhava-a com carinho, vigiava seu sono e protegia a sua cabeça da dureza do vidro.

  A menina que dormia continuou no seu sonho, com as palmas das mãos viradas para o teto, com o corpo colado no assento e completamente alheia aos olhos e afeto da outra menina. Antes de descer, ainda vi no rosto da menina acordada uma espécie de contentamento, como se fosse ela a receber o carinho e continuar relaxada. Só a vigilante do sono é quem vivia a sensação, porque a outra dormia e possivelmente não saberia de mão alguma na sua cabeça, quando acordasse. Dormia e não via os olhos que eu vi, sonhava em outra dimensão e não sabia do alívio da amiga ao vê-la ao seu lado quando acordou, largava as palmas das mãos o lado do corpo e não sentia, ao menos conscientemente, os dedos da amiga alisarem suas tranças. Só a vigilante estava acordada e ativa às 18:40 na segunda-feira, depois da escola. Desci.

   Perto do mar eu coloco minhas mãos na água, dezenas de vezes, e não preciso mergulhar para saber exatamente a força das ondas e o mistério do fundo.
  Perto do seu rosto, sinto o ar que entra e sai da sua respiração e divido-o com você. Aproximo minha mão e desenho um coração na sua bochecha; com a ponta dos dedos invento uma assinatura divina.
  Perto do seu peito, escuto suas batidas cardíacas e acho que o ritmo é tão bonito quanto a sua voz.
  Perto do dia que você  iria embora, atraso para não ver partir o voo, fico até mais tarde na noite anterior, bebo mais, acordo de ressaca, mas mesmo que eu queira, não sei esquecer que não estará mais.

   Perto da luz laranja danço a noite inteira, sou de outra cor, ninguém me acha, ninguém sabe que eu existi um dia, nem você a quem eu nunca deixei de olhar.
   Perto dos automóveis, sou quase atropelada, mas chego antes, do outro lado, não sujo as mãos no volante nem chamo alguém para conferir a água do carburador ou calibrar os pneus. Não dou trabalho, não incomodo, não peço que fique.
  Perto de onde irão descer, a menina vai chamar o nome da outra, terá que sacudi-la para que acorde, mas vai falar baixinho, para não assustá-la com a dissonância da vida nos dias comuns; ela entrará no sonho da outra para tirá-la de lá, ajudará com a mochila e vão subir juntas a rua da casa.

  A menina que dormiu de palmas voltadas para cima, teve cuidado, afeto, companhia e vigilância amorosa durante parte do trajeto de volta para casa. Talvez não o quisesse, poderia nem querer a proximidade e os olhos de contentamento da sua companheira de assento, elásticos coloridos e camiseta azul de uniforme, mas o teve. Talvez a vigilante não vá receber  afeto parecido, enquanto dormir, nem da amiga ou de outro, mesmo que o queira. O caminho das ondas é misterioso e vasto. Não aponta, antes de sair, o objeto que irá levar com ela ou do qual desviará. A onda não diz onde vai parar; quem está na areia, até sabe que uma hora ela quebra, mas não sabe quando e em que pedra ela vai se acabar.

  Às vezes, estar perto, somente, já é um amor. Não importa se onda vai levar ou só riscar os pés de quem espera. Olho para a arrebentação, não é a minha vez, não é de novo. Há casos em que se é a onda e se assim for, onde caberá uma onda?
  E quem se importará, se hoje no começo da noite alguém sentiu o contentamento de amar sozinha, enquanto alguém era amada sem saber? É isso, as ondas não cessam por não saberem onde parar.




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