sábado, 15 de abril de 2017

Escrevo cartas, não espero que elas cheguem

   A última chama é sempre a mais difícil de apagar e a primeira, é demasiado difícil de  acender. Os primeiros biscoitos saem crus ou queimados demais, a última fornada também não vem assada como espera o cozinheiro.  Se esperar pelo carteiro, ele não vem. Não enquanto estiver à porta, não na hora exata da espera; não nos quinze minutos, meia hora. Virá depois, quando não tiver ninguém mais na casa, quando o destinatário se distrair da espera. A carta chega para alguém que esqueceu-se de esperar por ela ou para quem não sabia que ela viria. As cartas têm um tempo. As cartas não obedecem as mãos que querem as cartas; elas desviam dessas mãos, elas se atrasam, se perdem, extraviam, não chegam para os que as esperam.

   Às vezes, vem um intervalo, não carece de desesperar-se e achar que foi embora, tampouco ficar por muito tempo magoada ou prometer nunca mais responder nada. É um afastamento provisório, uma liberdade que só é possível no amor. Quando voltar, não estará à porta, as luzes estarão apagadas e, silencioso, vai se sentar no degrau da calçada e esperar, nervoso, porque não saberá o que dizer, mas vai esperar do lado de fora, solitário, inseguro, esperançoso, com o sentimento abrindo o primeiro botão da jaqueta e a saudade não deixando-o ir embora.  No intervalo entre duas pessoas, porque ninguém se distancia por uma força externa, mas porque a continuidade começa a pesar, é preciso sair, fumar um cigarro e querer voltar com flores nas mãos.

   Esperar é o movimento contrário da carta; esperar é quase sempre fazer com que o carteiro escolha outra rua, perca seu endereço, coloque a carta numa caixa que não é a sua. Mover-se sem esperar nada é o único jeito de resistir. Colocar a isca, jogar o anzol  e ter infinita  paciência para não içar nada da água. Decerto que um peixe até poderá ser enganado, mas voltar à casa com a sacola vazia não deve ser o fim.  Esperar em frente ao rio, ao mesmo tempo que é movida por alguma coisa.   Sentar-se na calçada, ver o carteiro passar do outro lado e não se lembrar de perguntá-lo se tem alguma correspondência para o número da sua porta.

  Mesmo sentada, ser movida por uma fonte caudalosa e quente ou fina e gelada. Se algum vizinho perguntar, diz que não espera, só se move ou é movida. Move um pouco de calor em mim, aqui dentro, entre o tórax e o meu ventre. Move uma brisa salgada do verão em 2005, que nunca mais foi embora. Move uma vontade cada vez mais avassaladora  de me explicar, de aprender a língua do meu país e falar com os meus parentes. Move um desespero de não saber me comunicar e, agora, desejar fazê-lo. Move-se pela minha floresta misteriosa uma arara que come o farelo do pão que eu deixo cair, um bicho preguiça move-se pela árvore que nunca deu frutos. Move-me para fora da casa um clarão que não assusta ninguém, porque é só silencioso e branco

  Enquanto o carteiro não acerta a porta, movem-se, nas minhas lembranças, uma leitura, um autor, um quadro, a Jaqueline de Picasso, uma música, a voz de uma cantora antiga, um pano de prato com uma pintura infantil:
- Quero dar de presente para ela.
  Eu, vermelha, porque não sei receber presentes. Eu, feliz, pelo afeto inesperado, eu calada, porque desconheço a linguagem ao meu redor; veio, no dia 12, o amor que eu não esperava também.    Move-se numa das linhas da minha testa marcada uma resolução, uma vontade de mudança, de aprender o que eu, há bem pouco, não achava que precisasse e só agora sei o quanto eu necessito.

  Quando subir a rua, verá o homem de jaqueta sentado à porta e saberá que ele só veio por não tê-lo esperado mais. Ele a verá, se levantará e, inseguro,  ainda não estará certo do que dizer. Se aproximam, trocam cartas e  ela abre a porta para ele entrar; não precisou de campainha. O intervalo acabou, por hora. Matam as saudades na cozinha, enquanto ele conta como foram os dias e ela acende uma vela numa das bocas do fogão.

   Move uma chama na vela que precisa ser acesa, move um pavio queimando e um dedo molhado que o apagará, implacável, antes de todos irem dormir. Move um tempo certo de assar biscoitos e escrever cartas, não esperar por elas. Movem-se pontes que nos ligarão, de novo, a alguém de quem nos afastamos. Move um cheiro doce dos domingos antigos de páscoa; é preciso acreditar de novo.
  Eu acho que nunca  me esforcei de verdade para ser clara; obscura, cansei. Move um desejo de sair da morte, sem experimentá-la, de abrir a porta sem precisar que toquem a campainha. Move-se, entre os meus dedos, a insistência de escrever cartas e saber não esperar por nenhuma.


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