terça-feira, 18 de abril de 2017

As 36 formas de não-amor

   Gritar.
Escrever um bilhete e não escolher cuidadosamente as palavras, não revisá-lo, algumas vezes, antes de deixá-lo na porta da geladeira. Vai entender? Estou sendo clara?
Não escrever bilhetes, cartões ou, pelo menos, uma carta longa para ser encontrada numa mudança, num dia de procura desesperada por um passaporte ou carteira de trabalho, atrasar a busca, porque achou a carta. E ao lê-la, sorrir, lembrar-se de quem era quando a leu pela primeira vez  e molhar  o papel nas mãos; se foi embora ou não, tem a carta. Houve um encontro as três da tarde, numa segunda, no apartamento mais ordinário da cidade. Que bom que deixou a carta.

  Queimar memórias. As fotos, até entendo, os souvenirs baratos de viagem, também, porque precisam dar espaços para novas lembranças, mas não admitir um tempo, se recusar a falar sobre ele ou esconder vestígios, de um estágio, uma entrega é desonesto; cruel e ingrato com a sua própria  história.
  Não compreender a delicadeza dos sentimentos que fazem uma pessoa. Achar que pode carregar tudo num porta-malas espremido, sofrendo os trancos  da estrada esburacada, sem paradas,  só abrir e tirar tudo no final da viagem.

  Levantar antes dos créditos finais e não ouvir, de mãos dadas, a última música do filme até as luzes se acenderem e os dois olhares se encontrem, depois de uma narrativa em que estiveram juntos.  Não ir a cinemas porque se incomoda com o barulho da pipoca da poltrona ao lado, mesmo que eu adore cinema.
  Achar que amor, amizade ou qualquer tipo de afeto é planta do mato, que forte, resiste a tudo sem nenhum cuidado. Ou um toco de madeira no meio da estrada sem serventia quase nenhuma. O amor é importante, é salvador, mas também precisa ser salvo, às vezes.

  Sonegar sentimento, economizar em expressões de afeto, achar que eu entendo mesmo que não demonstre; acreditar demasiadamente no subentendido, subtextos, sub-dramas; isto é sub-amor.
  Não escutar um música nova por dia e pensar se aquele outro gostaria, não dividir um livro, não perguntar sobre o que eu tenho lido e ouvido.
 Não ter curiosidade alguma sobre o meu trabalho, não perguntar os detalhes, não saber que o que eu faço e como faço, é também uma identidade minha; e que importa.
  Não alcançar o fundo, ficar na superfície. Querer entrar na água e não molhar o cabelo. Ter medo do mergulho, do escuro, do gelo da água, não confiar na mão estendida.
  Não estender a mão nunca, achar que por eu saber nadar, nunca me afogarei.

  Não conhecer os  cheiros de quem diz amar. Não saber que ninguém cabe em um só frasco de perfume.
  Não desvendar os mistérios, não tentar ir além da porta. Não pedir licença. Se acostumar ao batente.
  Desistir da porta, antes de encontrar a chave.
  Ignorar as batidas do próprio coração, não senti-lo se desesperar-se quando a possibilidade do afastamento se aproxima.

  Não querer conhecer a casa em que eu cresci, nem querer saber sobre o meu quarto cuja porta era num armário embutido e a cama era de casal, que eu dividia com o meu irmão. Não se interessar pelas minhas fotos na escola, pelas lembranças de infância, não querer ouvir histórias sobre mim, que os amigos mais antigos gostam de contar. Não querer comer o bolo da minha avó.
  Não respeitar as minhas crenças, meus deuses, minhas divindades e tradições; rir ou menosprezá-las.; não tentar compreendê-las e querer me converter a uma fé igual a sua ou a uma descrença completa. 
  Não ouvir minha opinião contrária até o final, mas preparar-se para respondê-la num suspiro meu, antes que eu a terminasse de emiti-la.

  Sufocar o que eu sou, trancar as janelas da casa e ignorar a necessidade do voo. Negar-se a me assistir, deslizando por entre as nuvens. Dizer para não ir, mesmo sabendo que ir é a vontade do pássaro. Quando podia só dizer:
- Eu não queria que se afastasse, mas eu quero que você seja completamente livre e feliz.
  Não se surpreender com a minha chegada; mesmo que ela seja diária e repetida milhares de vezes.  
  Não buscar a minha mala na porta.

  Não tentar descobrir nenhum gosto meu, não querer surpreender, não tentar amar o que eu amo, só se acostumar a tudo ou se afastar deles e me puxar junto.
  Não perguntar a minha opinião sobre a sua opinião; casamento com separação total de ideias. Como se as ideias fossem apenas pó em cima dos móveis. Entramos e saímos os dois, cada qual como no seu começo. As ideias são os mobiliários mais fixos de uma casa; o amor é a casa.
  Querer que eu seja diferente, tentar fazer com que eu seja diferente, me amar, somente, na expectativa e na condição de eu ser diferente, propor e se esforçar pela mudança.
  Não desligar a TV e apagar a luz quando eu dormir.  Não fazer silêncio e me olhar sonhando por alguns minutos antes de também dormir.
  Querer quebrar os pratos e não saber passar o detergente e a água na nossa louça suja.
  Não chorar na minha frente e pedir para eu não chorar, quando eu quiser chorar. Não falar sobre choro.
  Não querer aprender a cor dos meus olhos todos os dias, não perceber que ela varia.
  Não perguntar se eu estou confortável; não se perguntar se você também está.

  Fugir da minha loucura ou tentar entendê-la, não perceber que um copo de água e companhia a faz inofensiva e mansa; não se sentar ao lado dos delírios.
  Querer falar sempre. Não tentar falar e ouvir, numa mesma frequência: cuidadosa, respeitosa e suave.
  Não rir das piadas do meu pai; é a expressão mais afetuosa dele. Não ouvir as histórias da minha mãe; é a carência mais antiga dela.
  Não dizer amor, não saber amor, ter medo e gritar o não-amor.
  Para sufocar a minha razão, a minha voz, o que eu sou e você diz amar, mas não ama, gritar.
  Gritar é espantar o amor para longe e depois matá-lo de tristeza e solidão. Das 36, uma basta para o não-amor.




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