sexta-feira, 24 de março de 2017

A voz que não abandona nem no último banco do ônibus

   Na rua sem saída, na travessa que não tem mais uma placa com o nome, na banca de jornal escondida na praça, no estacionamento do prédio comercial no domingo à tarde, no pátio da escola, quando não é recreio, numa  sala desconfortável, olhando para o teto a  espera de uma operação delicada de alguém a quem não se saberá perder do outro lado da porta, no alto do telhado de uma casa antiga, no vão atrás da escada que ninguém vê, alguma voz alcança?
   É possível que a palavra ultrapasse curvas e declives, atravesse paredes e muros com rebocos que esfarelam aos poucos, escorregue por mármores caros de um outro tempo, deslize por entre as pernas das mulheres que não usam meia calça no verão, mergulhe no escuro, sem rota, sem farol, alcance o braço desistente e gelado, abrace o corpo e suba com ele até à superfície?

   Como a voz quente poderá saber que alguém se afoga sem ouvir um grito? Como encontrar com vida, depois que o corpo sucumbir a proximidade do fim? Quanto tempo uma palavra dita  pode durar, depois que entra em contato com o ar? Um segundo, dez? Dias, meses, muitos anos? Ou não tem prazo definido para acabar? É para sempre para quem disse ou ouviu? Para quem dura mais?

  Atravesso a catraca, não tenho troco, por isso não abro a bolsa, não preciso soltar as mãos das barras, não me desequilibro e vou direto procurar um lugar para sentar. O fundo do ônibus está quase vazio, dos sete bancos, dois estão ocupados: um homem numa janela e uma menina no outro extremo, noutra janela. Escolho o meio, sento-me a dois bancos de distância de cada um, se não entrar mais ninguém, vamos espaçosos, livres e silenciosos. O homem tem uns cinquenta anos, tem  sacolas e olha para o que passa sob a sua janela, ao menos seu pescoço está virado para lá. A menina tem uns oito anos, carrega uma mochila de borboletas no colo e segura um celular com uma capa rosa, cheia de adesivos com estrelas metálicas, passa os dedos na tela com mais rapidez do que eu consigo acompanhar. Passageiros embarcam enquanto outros desembarcam, numa mesma parada, mas continuamos só os três no fundo do ônibus.

  Uma voz feminina rompe com o deserto de vozes e ela vem das mãos da menina. Ela ouve o recado até o fim, em volume máximo, sem fones. Escuto a mensagem, mas não entendo o contexto, a voz é afetuosa e se despede com "um beijo, Aninha". A menina da mochila de borboletas é Aninha, tem cabelos bem encaracolados e um arco vermelho que não deixa que eles lhe cubram a testa. Depois, vem outra mensagem e outra. Aninha ouve todos os áudios do celular, em sua maioria as vozes são femininas e um pouco maternais, e todas se despedem com "um beijo, Aninha". São mensagens que desejam bom dia, boa noite, perguntam sobre a saúde de Aninha, dão detalhes sobre alguma festa que ela vai participar: "fala com a sua mãe que o vestuário é livre, você pode vir com a roupa que preferir". Aninha está de uniforme, tento imaginar o que ela gostaria de vestir quando não está com uma calça azul de moletom e uma camisa com o símbolo de um colégio.

  Aninha ouve recados passados, vozes repetidas e sorri para a maioria delas. Aninha tem oito anos, está no fundo de um ônibus com dois desconhecidos, volta da escola sem que os olhos de um adulto do seu meio possam protegê-la da rua e parece segura. Aninha tem um cromossomo a mais, olhos castanhos rasgados e um casaquinho rosa, em cima da mochila,  parece feliz e confortável,  às vezes, suspira com uma palavra mais carinhosa, com um adjetivo no diminutivo e, principalmente, com o "um beijo, Aninha". Ela não usa os fones e é possível que pelo menos metade dos passageiros estejam ouvindo os recados em vozes que nunca conhecerão.

  Existe uma época em que o que vem do amor não causa constrangimento, em que a intimidade pública não é capaz de ferir ninguém, em que repetir vozes passadas não é uma viagem mórbida, mas o resgate de um afeto que nos mantém seguros no amor. Porque desnudar a alma no ônibus não é contravenção. Ouvir as mesmas palavras, as vozes passadas, repetir recados antigos é um jeito de não esquecer que embora as pessoas estejam distantes, suas vozes sempre chegarão na hora certa para uma emergência. As palavras aprendem a encontrar o fundo, mergulham no escuro, as vozes resgatam do frio o coração submerso em água caudalosa. Aninha descobriu um jeito de atravessar a cidade cercada de amor e vozes conhecidas.

  Eu ouvi suas vozes, Aninha, nelas eu pude conhecer você. Aninha, talvez você nunca me ouça, mas eu também gosto tanto de você. Obrigada por ter feito as vozes, que pertencem somente a você, ecoarem pelo corredor insosso e cinza do ônibus urbano. Aninha, eu vou descer na próxima parada e nunca mais apagar as vozes que me pertenceram um dia. As vozes sempre voltam, Aninha. As vozes têm uma habilidade inata de nos içarem do fundo. Boa noite e um beijo Aninha.


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