sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Melhor seria se não dessem um nome

  Sem prenúncio, nenhum aviso em código de cor, luz ou sirene, sem nem se perceber a aproximação do estado e, de repente, sobe a corrente quente pelo peito, derramando a lava alaranjada, densa e cálida. O líquido parece querer transbordar, mas cabe inteiro no corpo, ocupando cada espaço, inundando reentrâncias, invadindo os pulmões, até sufocar. Por isso a falta de fôlego, a respiração entrecortada, a palavra repetida num mantra: calma, calma.

   A chama fina não queima com dor, não marca a pele, tampouco produz cheiro de carne queimada, não assusta quem passa, porque ninguém a vê. Só esquenta dentro, febre diurna sem termômetro que possa anunciar um estado de doença; invasão sem testemunhas, que  faz o rosto ficar rosado, o lábio se arrastar um pouco para um dos lados e os olhos ficarem distantes na procura do que não sabe se já existe.

  Noutras vezes, não chega como fogo, mas é também avassalador. É um frio demasiado que sobe por toda a extensão da coluna, contaminando cada vértebra com o sopro gelado, que se espalha rápido e parece querer permanecer para sempre. Não dura, mas no enquanto não vai embora nunca. Eletriza as roupas, agita os batimentos e levanta os pelos da nuca, dos braços e das pernas. Às vezes, bastam os acordes primeiros de uma canção, uma cena de filme, um nome pronunciado pela primeira vez e a ventania gelada chega derrubando os muros, os cercados, telas e placas de estabilidade. O rosto também não se mantém impassível: repare nesse meio sorriso, na boca torta; nos passos cambaleantes de artista mambembe; nos olhos que brilham para um futuro que ninguém mais assiste.
 
  Zumbis, exilados do seu entorno, vivendo sob um tempo, espaço, clima e desgoverno próprios, sem a participação de uma coletividade com quem dividam as dificuldades ou partilhem dos encantos de ser tomado. É um estado completamente individual e solitário, mas de uma solidão tão tumultuada, tão cheia de ecos e territórios irremediavelmente ocupados, que confundem-se com uma multidão que precisa ser controlada. Então, em socorro , chega a voz suave, mas precisa: calma, calma.

  Quando o gelo da espinha ou o fogo das entranhas começa a, sutilmente, apagar os últimos vestígios de civilidade, quebrando compromissos, atrasando horários, confundindo lugares, datas e nomes, errando os pedidos, queimando aquilo que deveria ser mal passado, levando cru o que só é suportável torrado. Quando as lágrimas incontroláveis surpreendem na calçada movimentada ou a gargalhada sem piada constrange, escolhe-se alguém muito próximo, um íntimo muito antigo e revela-se o que não é certeza nem para si. Confidenciam sobre o vulcão instalado no peito, das geleiras que escorregam pelas costas e da anarquia toda instalada na vida. Sem liderança possível, sem projeto de governo eficiente, sem eleições democráticas. A amizade declara que entende, mas as labaredas e os icebergs são só deles, mesmo que exista alguma lembrança dos seus próprios.

  A intranquilidade dessas almas não é razão suficiente para atestado, licença médica,  prescrição terapêutica ou afastamento compulsório. Por isso estão pelas ruas, sorrindo, como se fossem sempre gentis, oferecendo o banco do ônibus, guardando seu lugar na fila, ajudando com a sacola na subida das escadas, porque o elevador está quebrado - nem reclamam do elevador, de novo, parado. Não são eficientes, práticos ou diretos, mas carregam uma aura de leveza perfumada e gentil, que carimba as marquises cinzas com desenhos que qualquer olho se comove.

  Se busca um nome para o estado, ele morre no batismo; porque não é coisa que se limite a uma palavra só. Se tentar explicar, a sensação ganhará ares de superficialidade e, fatalmente, será abandonada na primeira esquina. Seja ardência ou friagem, que essa desordem atropele, consuma e, depois, nos abandone no meio da praça, rotos, mancos e desesperados de medo de uma revisita e de coragem para um novo começo. Melhor seria se não dessem um nome, não aprisionassem na caixa apertada das coisas explicáveis. O mundo é mais humano com essas individualidades perturbadas. Esses olhos, essa boca torta...tem fogo aí, tem frio também.







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