domingo, 11 de setembro de 2016

A janela está aberta e agora terei que me acostumar com o frio

   Não foi pelo barulho de fora, ninguém chamou, então eu não corri para ver quem era. Não foi pelo calor,
porque era noite e fazia frio. Não esperava encontrar, lá fora, nada além do que eu já tinha visto. Não queria que alguém viesse, naquele dia, atravessando a rua, apontando na esquina até chegar ao meu portão. Não foi um  vento que assobiava lá fora, num ruído baixo, num sopro que eu não resistiria. Eu não sabia, mas quando eu abri a primeira janela, mudava tudo.
  Cheguei bem perto dela, afastei a cortina, acariciei de leve o vidro, abaixei o primeiro trinco, sem fazer barulho nenhum, depois, sem pressa, rompi com o segundo e um sopro de vento balançou meu cabelo. Sem saber, era o início de um ritual que duraria meses.  Eu não olhei para fora, só deixei uma pequena fresta de noite entrar pela sala e, enquanto eu me virava, a outra chegava silenciosa, discreta, curiosa e saía um pouco pela fresta que eu abri.

  Não marquei o dia no calendário, sei que era noite, mas nunca saberei que horas eram. Do ritual mesmo só fui capaz de me lembrar muito tempo depois. Mas a primeira janela que eu abri, era o início de uma outra vida, que eu não desenhei, não esperava e, agora, sei que começou nesse dia incerto de números e muito claro de lembranças.
  Deixei a janela aberta, atrás de mim, e segui inacabada  pelo corredor, não sabendo que não era só a noite que entrava, mas uma parte anterior ao que eu sou começava a sair pelo pedaço de janela aberta.

  Não alcançamos o tempo, estando bem em cima dele. É preciso sair, assistir de longe - espectador dos passos já dados. Sem tempo de voltar atrás, sem a possibilidade de redefinir uma ação. A janela aberta, eu vejo agora e não posso levantar para fechar ou decidir, num dos trincos, que eu não deveria abrir. Deu vontade de fechar os olhos, mas revi a cena em cada detalhe, cada parte que eu desconhecia enquanto ritualizava uma transição, sob cortinas brancas. Eu estava de costas para ela, que sorrateira, conhecendo a vista, entregue à lua, se banhava no pouco da noite que entrou pela fresta.

  Eu sigo para a segunda janela, sem saber que era só mais um passo definitivo para o nosso afastamento. Cheguei mais burocrática, sem tanta delicadeza, sem a emoção do cabelo recebendo o vento de fora, por isso não calculei a abertura, mas foi maior que a da primeira janela. Abri sem pensar no que isso significaria, abri sem saber se era seguro ou não, abri de acostumada, de ser uma dessas pessoas que empurram, praguejam e batem a porta, na despedida, para não serem vistas desesperadas de choro.
  E foi logo depois que abri a segunda  janela, que eu soube que não estava completamente desacompanhada, senti a sua presença, eu a vi solta, independente da minha vontade e ainda mais liberta da minha dependência, se aproximando e gostando mais da noite e do que via lá fora. Não virei para trás, não tentei uma conversa ou, até, fechar as janelas.

  Foi na segunda janela que eu entendi os riscos, que tive a completa visão do que só tempos depois, alcançou o meu calcanhar. Mas eu continuei a andar e resisti muito a olhar para trás. Mesmo sabendo que nesta segunda abertura ela voava um pouco, ainda assim, eu saí na direção da última janela. Sem desistência, sem a humanidade de um olhar de compaixão. Andei firme, como um açougueiro que acostumado ao abate não se comove com o derradeiro olhar de uma vaca dócil, confiante e enganada, que segue num corredor vermelho, marcado pelos seus, para o seu fim. Fui desumana, cruel e desferi o golpe certeiro, indo para a terceira janela.

  A terceira janela que eu abrir, será para vê-la ir embora; derramarei um choro do qual ela nunca poderá se dar conta. Vou afastar a cortina, colocar minhas mãos sobre cada trinco e destravá-los de uma só vez, abrindo a janela até o final, sem espaços para segurança, para uma volta, sem desperdiçar o poder de libertar completamente. Antes de ir, eu sei, ela dirá que compartilhará da mesma saudade, que as dores serão as mesmas e que o afastamento será uma ferida com uma proporção muito aproximada da minha, que ela verá aberta, latente, artérias pulsando de dor e sangue. E vai querer estancar com palavras o que nem linha ou agulha poderão fechar.

  No caminho para a terceira janela, já começo a perder a certeza, a dureza, o pudor de não me desfazer em lágrimas e desespero de solidão. A terceira janela eu abrirei gritando, rejeitando toda a dignidade que eu cultivei nas duas primeiras. Vou fazer chantagem, vou simular desmaio, vou inventar que o mundo lá fora não é tão bom quanto parece, porque é uma parte de mim que veio antes e que, desbravadora, me apresentou a um certo mundo; eu não saberei ser mais sem ela. Vou chorar, porque sei que a janela aberta já a chama faz tempo, desde aquela primeira que eu descerrei. Serão duas dores de despedida, serão duas saudades de muita intensidade, mas só uma delas vai ter que se acostumar com o frio da casa, depois que as três janelas estiverem definitivamente abertas. A dor de quem se despede preso ao chão, do lado de dentro da janela, sempre será maior do que a de quem parte para um voo. A janela chama e ela irá embora. Na terceira janela que ainda não abri, minhas mãos tremem e o meu choro já molha o batente. Ninguém passa por esta casa sem antes atravessar o corredor. Não sou eu quem escolhe o tempo de abrir as janelas; elas sabem, mais do que eu, que eu fico para abrir, fechar e contemplar os vultos, enquanto os outros, se entregam aos voos. A janela aberta e eu ficarei com frio, saudade e raízes profundas. Sou feita de três janelas: a primeira de coragem, a segunda decisão e a última é esse adeus possível.




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